Biologia & Ciências
28/10/2014
Florestas em transformação
Trepadeiras estão remodelando a Amazônia, e os bambus, a mata atlânticaPor Rodrigo de Oliveira Andrade (Revista Pesquisa FAPESP)
Depois de dormir em uma rede em um acampamento na floresta a 80 quilômetros de Manaus, a ecóloga norte-americana Robyn Burnham levanta-se pouco antes do amanhecer, toma dois goles rápidos de café e embrenha-se na mata fechada à procura de lianas, um tipo de trepadeira que se enrola em árvores. Sem se abater com o calor e o suor contínuos, ela marca com fitas vermelhas as espécies que encontra entre emaranhados de folhas, galhos e troncos, para depois acompanhar seu crescimento ao longo dos anos. Em seguida, Robyn e seus assistentes medem os caules das plantas com mais de um centímetro (cm) de diâmetro, coletam algumas amostras de ramos e as levam para o laboratório para análise e identificação da espécie.
Robyn e outros pesquisadores, com base em 35 anos de observações de campo, estão vendo que as populações de lianas estão se expandindo em meio às florestas intactas do interior da Amazônia. Essa é a primeira vez que se observa esse fenômeno. Até então se sabia que a proliferação de lianas era comum apenas em áreas de vegetação degradada, como os fragmentos de florestas cercados principalmente por pastagens e estradas.
Na mata atlântica, embora o levantamento não tenha sido tão amplo, são os bambus que parecem estar remodelando fragmentos florestais, segundo estudos de pesquisadores do Instituto de Botânica de São Paulo (IBt). Os bambus, assim como as lianas, se beneficiam da fragilidade de ambientes perturbados para ganhar espaço. Essas duas constatações sugerem que tanto a Amazônia quanto a mata atlântica podem estar submetidas a pressões ambientais antes desconhecidas.
Há tempos se sabe que as queimadas, a derrubada de vastas áreas de mata nativa para a agricultura e a pecuária e até mesmo o corte seletivo interferem na dinâmica da floresta, alterando a variedade de espécies de plantas e seu ritmo de crescimento. Agora se começa a perceber que outros fatores também podem afetar essa dinâmica. Para o biólogo norte-americano William Laurance, autor principal de dois artigos publicados neste ano na Ecology sobre o comportamento das lianas na Amazônia, uma possível explicação para o aumento da proliferação dessas plantas em áreas não degradadas é a elevação dos níveis de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera.
Embora abundantes e diversas em florestas do mundo todo, é nos trópicos que as lianas se encontram em maior quantidade, riqueza e variedade de formas e tamanhos. Algumas, com caules frágeis e esverdeados, são quase imperceptíveis em meio às florestas. Outras têm cascas como as das ár-vores e repousam melancoli-camente sobre as copas das florestas.
As lianas espalham-se por ambientes diversos. Podem produzir até 40% das folhas que cobrem as árvores, além de sementes e pequenos frutos que servem como alimento para pássaros e pequenos mamíferos. Em geral, as lianas sobem em espiral em volta dos troncos das árvores e as envolvem como se as estivessem estrangulando. As árvores cobertas por lianas crescem mais devagar, se reproduzem menos e morrem mais rápido – muitas não suportam o peso, por exemplo.
Percebendo esse funcionamento, os pesquisadores agora estão vendo que as lianas podem reconfigurar a comunidade de árvores, remodelando ambientes ao favorecer a sobrevivência de algumas espécies em detrimento de outras.
Com seu trabalho de identificação de espécies de lianas, Robyn, aos poucos, está mapeando a distribuição dessas plantas em algumas áreas da Amazônia. Ela já identificou 300 espécies, muitas delas ainda não descritas. “Encontramos mais de 80 espécies em meio hectare!”, conta a ecóloga da Universidade de Michigan, que visita a Amazônia pelo menos duas vezes por ano. “Esperamos que esse censo ajude a identificar quais espécies de lianas estão se beneficiando mais desse cenário e ganhando mais espaço”, diz Robyn, que, assim como Laurance, integra o Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Há mais de 30 anos esse projeto monitora a evolução de mais de mil quilômetros quadrados (km²) de florestas fragmentadas e contínuas na Amazônia. O trabalho de Robyn também está ampliando o conhecimento de outros pesquisadores sobre a composição das comunidades de lianas, ajudando-os a ter uma visão mais detalhada da proliferação dessas plantas.
Ao longo de 35 anos, os pesquisadores desse programa foram a campo para analisar as taxas com que cresciam e morriam 60 mil árvores e 178.295 arvoretas (com menos de 10 cm de diâmetro à altura do peito) em 55 hectares de floresta contínua e 39 hectares de floresta fragmentada. O monitoramento contínuo deu origem a um sofisticado banco de dados sobre o comportamento dessas florestas. Mais recentemente, os pesquisadores também contabilizaram as populações de lianas, que representam uma parcela importante da biomassa e da diversidade das florestas, mas que até então não eram alvo de levantamentos florestais. Acompanharam o crescimento de 35 mil lianas em 66 áreas de um hectare em florestas contínuas e em fragmentos cu-jo tamanho varia de um a 100 hectares.
Por meio de simulações em computador, os pesquisadores viram que as populações de lianas estão se expandindo em áreas de florestas sem histórico de perturbação. “Isso foi uma supresa”, disse o ecólogo paulista José Luís Camargo, coordenador científico do PDBFF, “a proliferação de lianas é comum em áreas próximas às bordas das florestas fragmentadas”.
Nos últimos 14 anos, a população de lianas nas florestas intactas próximas a Manaus cresceu, por ano, 1% acima do esperado, segundo Camargo. Os pesquisadores acreditam que a proliferação dessas plantas nessas áreas se deve ao aumento das concentrações de CO2 na atmosfera. O CO2 parece agir como um fertilizante, que, ao acelerar tanto o crescimento das lianas quanto das árvores – mas sobretudo das lianas –, contribui para a remodelação da floresta. Para as lianas, a maior concentração de CO2 supriria em parte a menor incidência de luz nesses ambientes fazendo-as proliferar mais rapidamente. Já para as árvores, intensificaria a disputa por espaço. “A competição por água, nutrientes e luz em florestas contínuas também é mais acirrada entre árvores e lianas”, diz Camargo. Nessa competição, as árvores de algumas espécies morrem mais cedo, enquanto outras sucumbem à proliferação das lianas. “Isso torna o comportamento da floresta mais dinâmico”, explica Laurance, que viveu cinco anos no Brasil e hoje trabalha na Universidade James Cook, na Austrália.
De modo geral, as lianas se adaptam melhor às florestas perturbadas, em parte devido ao chamado efeito de borda – a cada ano o desmatamento acrescenta 32 mil km de bordas à floresta amazônica (ver Pesquisa FAPESP nº 205). Nas áreas de transição entre a mata fechada e as áreas abertas, as árvores caem, secam e morrem mais facilmente, por causa do excesso de luz, calor e vento. Com mais luz, as lianas, mais resistentes à seca e eficientes no crescimento, avançam e alcançam com facilidade a copa das árvores. “Essas mudanças podem diminuir os estoques de carbono, alterar vários aspectos da ecologia da floresta e reduzir a diversidade de espécies de árvores”, diz Camargo. Por essa razão, explica, as lianas costumam ajudar os pesquisadores a entender o grau de perturbação das florestas.
Competição acirrada
Todos os dias, de novembro de 2008 a agosto de 2009, a bióloga Maria Tereza Grombone Guaratini e sua equipe do Instituto de Botânica de São Paulo mediam e numeravam as lianas que encontravam em ambientes com e sem bambus separados por 1 km de distância no terceiro maior fragmento de floresta atlântica de São Paulo, no Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, a 14 quilômetros do centro da capital paulista. Por lá, eles também observaram algo inesperado: as lianas estão tendo de lidar com a incômoda presença dos bambus, que, assim como elas, precisam de luz e espaço para avançar pelo ambiente. “Nessa competição, os bambus levam vantagem sobre as lianas”, diz Maria Tereza.
No estudo, Maria Tereza e colegas observaram que os bambus lenhosos da espécie Aulonemia aristulata, nativa da mata atlântica, liberam compostos químicos no solo que inibem o crescimento das árvores e até mesmo a germinação das lianas. Sem as árvores, as lianas não têm no que se apoiar em sua busca por luz – e também não conseguem se envolver em volta do caule liso dos bambus. Ao todo, os pesquisadores identificaram 1.031 exemplares de lianas com mais de um cm de diâmetro, dos quais 277 estavam em áreas dominadas por bambus e 754 em áreas não dominadas por eles. Boa parte das lianas encontradas em ambientes com A. aristulata tinha o caule grosso, o que sugere, segundo Maria Tereza, que essas plantas já estavam lá antes da invasão dos bambus.
Assim como na Amazônia, a proliferação de bambus pode estar relacionada ao aumento da concentração de CO2 na atmosfera. Em 2013, Maria Tereza colocou essa hipótese à prova cultivando exemplares jovens da espécie A. aristulata em dois tipos de câmaras: uma com altas concentrações de CO2 e outra com condições normais.
Após sete semanas, os bambus cultivados na câmara com mais CO2 realizavam 70% mais fotossíntese, eram 92% mais altos e tinham uma área foliar 104% maior do que os que cresceram na outra câmara. Em um cenário de mudanças climáticas globais, os bambus podem dominar cada vez mais ambientes, afetando a composição de espécies de árvores, segundo Maria Tereza. O que ela observou entre os bambus da mata atlântica talvez valha para as lianas da Amazônia.
Esta notícia foi publicada na edição 224 de Outubro de 2014 da revista Pesquisa Fapesp. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.