Biologia & Ciências
02/03/2012
Veneno animal
Por Fábio de Castro - Agência FapespAs toxinas produzidas por animais venenosos contêm compostos que podem ser aproveitados no desenvolvimento de uma ampla gama de fármacos e inseticidas. Mas, para que isso seja possível, é preciso identificar compostos de interesse, desvendar suas estruturas moleculares, realizar a síntese das moléculas em laboratório e, por fim, realizar testes clínicos.
Durante quatro anos, um grupo de pesquisadores se dedicou à identificação e elucidação da estrutura molecular de cerca de 200 peptídeos e proteínas, além de 140 pequenas moléculas encontradas no veneno de diferentes grupos de aranhas, vespas e outros artrópodes venenosos do Brasil.
De acordo com Mario Sergio Palma, professor do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Projeto Temático "Procura de compostos líderes para o desenvolvimento racional de novos fármacos e pesticidas a partir da bioprospecção da fauna de artrópodes brasileiros", além de prospectar novas moléculas, os cientistas envolvidos com o projeto aprofundaram estudos dos mecanismos de ação das toxinas e ganharam experiência com novas técnicas de síntese de peptídeos e de pequenas moléculas.
O Projeto Temático teve dois focos principais: as macromoléculas de biopeptídeos e proteínas – que têm interesse para aplicações na indústria química e farmacêutica – e as pequenas moléculas. A equipe se dividiu entre os dois focos e trabalhou com artrópodes venenosos de diferentes grupos, incluindo aranhas, vespas, abelhas e formigas.
“Fomos procurar, fundamentalmente, drogas que têm ação neurotóxica. Quando se compreende a estrutura e a ação dessas substâncias, com uma pequena modificação é possível fazer com que elas tenham ação neuroprotetora”, explicou Palma.
No decorrer da evolução, a estrutura das toxinas evoluiu para se adaptar à estrutura das células dos animais que deveriam ser atacados, ou dos quais era preciso se defender. Assim, em geral, para compreender a ação da toxina, é preciso não apenas desvendar sua composição, mas entender todo o contexto no qual ela atua.
“Trabalhamos, por exemplo, com dois tipos de aranhas: as construtoras de teias aéreas e as errantes – que vivem no solo e caçam. A composição dos venenos de cada uma delas é muito diferente, já que são utilizados com finalidades e estratégias distintas”, disse Palma.
As toxinas das aranhas que vivem longe do chão têm poucas proteínas e peptídeos, mas são cheias de pequenas moléculas orgânicas muito parecidas com as toxinas das plantas. As aranhas do gênero Nephila, que fazem grandes teias amareladas e douradas, foram o primeiro alvo dos estudos.
“As gotículas viscosas na teia das Nephila servem para prender pequenos insetos e também para lubrificar e favorecer a flexibilidade da teia. São compostas de um conjunto de vesículas feitas de lipídios por fora e preenchidas com toxinas”, disse.
Os cientistas estudaram como esses lipídios reagem com o exoesqueleto dos insetos presos pelo visgo, removendo a cera que o protege e colocando-o em contato com as neurotoxinas, paralisando o animal.
“Essas substâncias são inseticidas poderosíssimos. Encontramos ali moléculas interessantes, que são alcaloides retirados pelas aranhas de suas presas, que por sua vez os sequestram dos alcaloides das plantas. Uma vez que a aranha obtém o alcaloide, ela introduz modificações em sua estrutura, produzindo as neurotoxinas”, explicou Palma.
Essas aranhas só consomem proteína fresca, por isso não matam as presas. É preciso injetar nos insetos um veneno paralisante, guardando-o para os momentos de fome. Além disso, a aranha produz toxinas diferentes de acordo com o período do ano, sempre de forma coerente com o tipo de presa disponível.
“Observamos que as toxinas usadas para provocar a paralisia produzem muitas estruturas químicas diferentes. Nesse grupo de aranhas, elucidamos a estrutura de 106 moléculas”, contou o coordenador do projeto.
Três das toxinas descobertas, que causam paralisia transitória, mostraram-se especialmente interessantes quando testadas no sistema nervoso de ratos e camundongos.
“Usamos modelos de epilepsia e descobrimos que essas três drogas têm efeitos antiepiléticos promissores. Um trabalho sobre isso foi publicado na revista Brain Research”, disse Palma.
O modelo se mostrou tão promissor que o grupo estabeleceu uma parceria com o professor Jaderson da Costa, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), para testá-lo em modelos in vitro de tecido de cérebros humanos com epilepsia refratária.
Doenças neurodegenerativas
Os aspectos evolucionários convergentes entre plantas e aranhas também foram estudados nas chamadas aranhas coloniais, como a Parawixia bistriata, que fazem teias em plantas do gênero Banisteriopsis. Diferentemente das Nephila, que têm teias perenes, essas outras produzem as teias e as destroem diariamente.
“Encontramos um grande volume de alcaloides no veneno dessas aranhas e passamos a estudar o mecanismo de ação dessas moléculas, que provocam convulsões quando aplicadas em camundongos, ratos e coelhos. Descobrimos que o mecanismo envolve os canais de cálcio dos neurônios”, contou Palma.
Em doenças como Parkinson e Alzheimer, os neurônios degenerados têm um defeito morfológico que mantêm seus canais de cálcio abertos permanentemente, provocando uma metilação ininterrupta que causa tremores.
“O envenenamento produzido pela aranha tem um efeito muito parecido. Mapeamos o cérebro dos animais intoxicados e, com um marcador, localizamos a região onde a toxina se acumula. Verificamos que ela produz a morte do animal por excesso de íons cálcio”, afirmou Palma.
Entre o grupo das aranhas que vivem no solo, como as armadeiras, o grupo da Unesp isolou uma substância com estrutura química pouco comum na natureza. Trata-se de um composto não peptídico, não proteico, de baixa massa molecular e que aparentemente não tem toxicidade, mas atua sobre os canais iônicos.
“Testamos a substância no laboratório da PUC-RS, em ratos, e descobrimos que se trata de uma droga antiepilética ainda mais potente que a anterior. Estamos aguardando a autorização para realizar estudos em modelos humanos”, disse.
Os pesquisadores descobriram também, em vespas, uma neurotoxina capaz de paralisar e matar alguns insetos, ao agir no receptor de glutamato – uma classe de moléculas que recebem o principal neurotransmissor que estimula o cérebro.
“Há várias subfamílias e subtipos de vespas. Em um deles, descobrimos essa droga, que existe de forma modificada no sistema nervoso de mamíferos. Esse composto se mostrou um potente inibidor de crises epiléticas em modelos animais in vitro. Trabalhamos agora no processo de síntese dessa substância e estamos aguardando autorização para administrá-la em modelos animais in vivo”, disse Palma.
No veneno das vespas da espécie Polybia paulista, conhecidas como “paulistinhas”, o grupo de cientistas encontrou uma substância do grupo fenilmetilamina, semelhante a drogas utilizadas para controlar o apetite.
“A substância é um isômero estrutural de certas anfetaminas usadas para o controle do apetite e proibidas no Brasil. É parecida também com as drogas ilegais usadas em raves”, disse Palma.
No veneno de abelhas, os cientistas da Unesp descobriram grandes moléculas com notável reatividade a anticorpos da imunoglobulina. Segundo Palma, nunca se conseguiu produzir um soro para veneno de abelhas, pois o mecanismo de ação do veneno era desconhecido.
“Elucidamos a composição das proteínas do veneno e conseguimos entender todas as etapas do processo de envenenamento. A partir daí, fizemos uma parceria com a divisão de soros do Instituto Butantan e com o grupo de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e produzimos o soro. Temos agora a primeira patente de soro de veneno de abelha do mundo, que já foi outorgada. Estamos transferindo o know-how para a divisão de produção de soro do Butantan para planejar a produção em escala”, disse.
Na vertente do projeto voltada aos peptídeos, duas substâncias isoladas a partir de venenos de vespas tiveram destaque especial: peptídeos antibióticos e uma nova família de peptídeos muito pouco conhecida até agora, com ação potente em células pancreáticas. O trabalho foi feito em parceria com o professor Everardo Magalhães Carneiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em diabetes.
“Pode ser um modelo interessante para ajudar em certos casos de diabetes que são provocados pelo fato de a glândula produtora de insulina não conseguir secretar a substância. Talvez esses peptídeos sejam adjuvantes interessantes para auxiliar a liberação natural de insulina”, afirmou Palma.
Esta notícia foi publicada em 02/03/2012 no site agencia.fapesp.br. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.