Biologia & Ciências
16/02/2012
Seleção de embriões
Criança não carrega gene doente e é totalmente compatível com irmã, que sofre de talassemia major.Acaba de nascer o primeiro bebê brasileiro selecionado geneticamente em laboratório de maneira a não carregar um gene doente e de ser totalmente compatível com a irmã - que sofre de talassemia major, uma doença rara do sangue e que se não for tratada corretamente pode levar à morte.
Maria Clara Reginato Cunha, de apenas quatro dias, nasceu no Hospital São Luiz para salvar a vida de Maria Vitória, que tem cinco anos e convive com transfusões sanguíneas a cada três semanas e toma uma medicação diária para reduzir o ferro no organismo desde os cinco meses.
Nos pacientes com talassemia major - a mais grave e a que realmente precisa de tratamento -, a medula óssea produz menos glóbulos vermelhos e, consequentemente, não consegue fabricar sangue na frequência necessária, podendo causar anemias graves. No Brasil, são pouco mais de 700 pessoas com a doença.
Técnica
Selecionar embriões saudáveis para tentar salvar a vida de outro filho doente não é novidade - esse procedimento é feito no mundo todo desde a década de 1990. A novidade, neste caso, é que além de não carregar o gene da talassemia major, o embrião selecionado (Maria Clara) também é 100% compatível com Maria Vitória, o que vai facilitar a realização de um transplante de sangue de cordão umbilical.
Segundo o geneticista Ciro Dresh Martinhago, a técnica usada para identificar os genes doentes e também a possível compatibilidade é a mesma - de biologia molecular-, mas exige mais conhecimento específico no caso de analisar a compatibilidade.
"A gente coleta uma única célula do embrião para fazer a análise molecular. Ao todo, verificamos 11 regiões do DNA da célula, sendo dois relacionados ao gene alterado e nove relacionados à compatibilidade, que é mais complexo", explica o médico, diretor da RDO Diagnósticos e responsável pela análise genética.
De acordo com ele, a dificuldade técnica e a falta de profissionais experientes nessa área é um dos motivos que faz o método ser pouco usado em todo o mundo. O primeiro caso de seleção de embrião 100% compatível aconteceu em 2004, na Europa.
Decisão
Antes de decidir fazer a fertilização in vitro com o objetivo de tentar curar a filha, o casal Jênyce Carla Reginato Cunha e Eduardo Cunha entrou em contato com ao menos 30 médicos do Brasil e do exterior.
Na primeira tentativa, os seis embriões gerados no processo de fertilização foram descartados ou porque tinham a doença ou porque eram incompatíveis com Maria Vitória. Mesmo assim, o casal não desistiu.
Na segunda tentativa, o casal conseguiu produzir dez embriões, dos quais apenas um não tinha a doença e era 100% compatível. Um segundo embrião compatível tinha apenas traços da doença (ela não se manifesta) e também foi implantado na mãe. "Até agora já concluímos 90% do nosso objetivo. Os 10% que faltam são o transplante, que vamos deixar nas mãos de Deus. Se não tivéssemos persistência, fé e coragem não estaríamos aqui", afirmou Jênyce.
A coleta das células do cordão foi feita pela equipe do Hospital Sírio-Libanês, onde será feito o transplante. "Há outros relatos semelhantes na literatura e tem tudo para dar certo. Vamos esperar alguns meses porque se não der certo com o cordão, nós podemos coletar a medula do bebê", explicou o hematologista Vanderson Rocha, que será o responsável pelo transplante.
Merula Anargyrou Steagall, presidente da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta), diz que a entidade está comemorando a conquista. "É uma porta que se abre e que representa uma esperança para outras doenças genéticas e não apenas para a talassemia. Agora vamos acompanhar os resultados", afirmou.
Artur Dzik, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, também considera o nascimento de Maria Clara uma conquista. "É mais um avanço da ciência na área da medicina reprodutiva que só veio para o bem. É uma forma de medicina preventiva", disse.
Norma brasileira
Não há no País uma norma que regulamente a seleção embrionária para fins terapêuticos - como a gestação de um bebê capaz de ajudar, por doação de órgãos, na cura de doenças de outras pessoas. Especialistas em bioética apontam que este é o momento para a comunidade médica debater o assunto e chegar a uma orientação geral sobre os procedimentos no Brasil.
A reprodução assistida foi abordada em norma pela primeira vez em resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 1992. E atualizada 18 anos depois, em 2010. A única finalidade prevista é a "procriação humana". "Isso dá a entender que jamais você pode fazer um ser para servir de apoio a uma pessoa que tem doença", diz o coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Reinaldo Ayer.
O texto proíbe também a escolha do sexo do bebê - permitida somente caso haja doença associada. Também afirma que "toda intervenção com fins diagnósticos não poderá ter outra finalidade que não a de avaliar a viabilidade (do embrião) ou detectar doenças hereditárias". No caso, os embriões foram submetidos a dois exames: um para determinar a presença da doença hereditária e outro para avaliar a compatibilidade com a irmã. "Ainda não há regras para esse tipo de seleção dos embriões em que você também leva em conta o benefício para um futuro receptor de transplante", aponta Roberto D'Ávila, presidente do CFM, que prevê a discussão do assunto em plenário do conselho.
"A resolução trata da reprodução assistida do ponto de vista do 'não exagero'", diz Ayer. "Se juntarmos a reprodução assistida à utilização de células-tronco para substituir órgãos em falência, podemos considerar ético, desde que a intenção seja um fim terapêutico. Lógico que essa pessoa gerada não pode ter a vida exclusivamente voltada para a cura. Entraríamos no debate da dignidade humana."
Para Dalton Ramos, professor de Bioética da USP, os pais devem estar informados dos riscos inerentes à reprodução assistida (na obtenção dos embriões por meio do estímulo hormonal e na manipulação deles). Ramos diz que não deve ser "vendida" aos casais apenas as possibilidades de sucesso da técnica.
O pesquisador faz ressalvas quanto à pouca eficácia da reprodução assistida - no caso, foram produzidos dez embriões em laboratório e somente dois eram saudáveis e compatíveis. "O fato de a criança nascer é um bem, mas a questão é: a que custo?"
Esta notícia foi publicada em 15/02/2012 no sítio noticiasbr.com.br . Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.