Disciplina - Biologia

Biologia & Ciências

11/09/2018

Ameaças aos macacos

Cerca de 60% das espécies de primatas podem desaparecer até o fim do século, segundo estudo

Aproximadamente 60% das espécies de primatas do mundo, incluindo chimpanzés e orangotangos, correm risco de extinção devido à redução de hábitat causada pela expansão das fronteiras agrícolas e, em menor escala, pela exploração madeireira e em razão da caça de animais silvestres. Caso nada seja feito nas próximas décadas pelos governos locais e órgãos internacionais, esses primatas, que, em alguns casos, já apresentam declínio populacional significativo, podem desaparecer até o fim deste século. O alerta consta de um estudo desenvolvido por um grupo internacional de 72 especialistas em primatas, entre eles pesquisadores de várias instituições do Brasil.

Os quatro países em situação mais delicada são justamente os que concentram o maior número de espécies. Indonésia, Madagascar, República Democrática do Congo (RDC) e Brasil abrigam dois terços das 439 espécies de macacos conhecidas no mundo, de acordo com um levantamento publicado em junho na revista PeerJ. O Brasil tem 102 espécies de primatas, 39% delas estão ameaçadas de extinção.

No estudo, os pesquisadores analisaram dados da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) sobre o status de conservação das espécies de primatas no mundo e do Global Forest Watch, que acompanha a expansão ou retração das florestas. Também usaram informações do Fundo das Nações Unidas para agricultura e alimentação (FAO) sobre a dinâmica de expansão das fronteiras agrícolas e da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e da Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção (Cites).

A expansão das fronteiras agrícolas é a principal ameaça à conservação desses animais em todos os países analisados. De 1990 a 2010, cerca 1,5 milhão de quilômetros quadrados das áreas de ocorrência de macacos foram destinadas à agricultura, colocando em risco muitas espécies no Brasil e na Indonésia. Nas últimas duas décadas, esses países perderam 46,4 milhões e 23 milhões de hectares (ha) de cobertura florestal, respectivamente. No mesmo período, a República Democrática do Congo registrou perda de aproximadamente 10 milhões de ha de área florestal. Em Madagascar esse número foi de 2,7 milhões de ha.

Uma das consequências do desmatamento, segundo os pesquisadores, é a transformação de áreas contínuas de mata em trechos isolados. Esse efeito, chamado fragmentação, está obstruindo as rotas de dispersão usadas pelos zogue-zogues (Callicebus spp.) para migrar de um lugar para outro nas florestas no sul do estado de Rondônia, por exemplo.

“Os primatas mantêm uma ampla e complexa rede de interações ecológicas nas florestas tropicais, atuando na dispersão de sementes de árvores grandes, predando alguns animais e servindo de presa para outros”, explica o biólogo Júlio César Bicca-Marques, da Escola de Ciências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “A redução das populações desses animais desestruturaria os sistemas ecológicos que garantem o equilíbrio dos ecossistemas que habitam, com impactos no processo de regeneração das florestas”, ressalta o pesquisador, um dos autores do estudo publicado na PeerJ.

Com base nos dados levantados, os pesquisadores desenvolveram um modelo computacional capaz de gerar projeções sobre a expansão das fronteiras agrícolas até o final deste século nos quatro países, e o impacto que isso teria sobre as espécies de primatas nessas regiões. O cenário mais pessimista, baseado no atual ritmo de degradação ambiental experimentado por eles, estima que os hábitats dos primatas encolherão 78% no Brasil, 72% na Indonésia, 62% em Madagascar e 32% na República Democrática do Congo até 2100. Segundo o estudo, o Brasil tem mais a perder do que os outros países porque o agronegócio aqui é bem mais forte e de caráter mais expansionista do que nos outros países analisados.

Para o médico veterinário Danilo Simonini Teixeira, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), os dados apresentados no estudo são pertinentes e plausíveis. “As projeções baseiam-se em informações de projetos desenvolvidos há mais de 20 anos nos países avaliados, de modo que as estimativas têm embasamento e são confiáveis”, destaca o pesquisador, que não participou do estudo na PeerJ.


Diversidade ameaçada

A situação é particularmente preocupante em Madagascar e na Indonésia, onde vivem 148 das 439 espécies de primatas do mundo. Cerca de 90% delas estão em rápido declínio populacional. Em Madagascar, a expansão dos campos ilegais de mineração de cobalto, níquel e ouro nas florestas, inclusive em áreas de proteção ambiental, põe em risco primatas como o lêmure-de-cauda-anelada (Lemur catta), reconhecíveis pela cauda listrada de preto e branco e olhos esbugalhados em tons alaranjados. Em Kalimantan, Indonésia, o garimpo de ouro ameaça os macacos-narigudos (Nasalis larvatus) e o taciturno gibão-cinza (Hylobates muelleri). “Muitos primatas são capturados e vendidos nas cidades como animais de estimação, para uso na medicina tradicional ou com fins místicos”, comenta Bicca-Marques.

Outro inimigo dos primatas é a caça comercial ou de subsistência, que se expandiu nos últimos anos por conta do crescimento urbano próximo aos seus hábitats. Estima-se que 85% das espécies de macacos sejam caçadas na Indonésia, 64% em Madagascar, 51% na República Democrática do Congo e 35% no Brasil. É o caso dos macacos-aranha (Ateles geoffroyi), frequentemente abatidos na Amazônia. Na Mata Atlântica, os principais alvos são os macacos-prego-do-peito-amarelo (Sapajus xanthosternos) e o muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides). Na República Democrática do Congo, a caça está dizimando os gorilas (Gorilla gorilla) e os bonobos (Pan paniscus).

“A caça é uma prática com fortes raízes culturais e mais difícil de fiscalizar do que o desmatamento”, afirma o bioantropólogo Mauricio Talebi, do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, e um dos autores do estudo. Ele explica que a caça reduz o potencial de reposição das populações de macacos de ciclo reprodutivo lento. “O tempo para que as fêmeas de algumas espécies atinjam o período fértil pode ser de até 15 anos”, ressalta.

A contaminação por doenças infecciosas também favorece o declínio de algumas espécies de primatas. Entre outubro de 2002 e janeiro de 2004, surtos de ebola mataram mais de 90% dos gorilas e quase 80% dos chimpanzés do Santuário de Fauna Lossi, na República Democrática do Congo. No Brasil, de acordo com Talebi, desde 2016 o surto de febre amarela que se abateu no Sudeste do país dizimou milhares de macacos, incluindo espécies ameaçadas, como o macaco-sauá (Callicebus personatus) e o bugio-ruivo (Alouatta guariba mitans).

Somente o ecólogo Márcio Port Carvalho, do Instituto Florestal de São Paulo, em fins de dezembro de 2017 recolheu 65 bugios-ruivos mortos pelo vírus da febre amarela no Horto Florestal, na zona norte da capital paulista (ver Pesquisa FAPESP nº 263). “O risco de transmissão de doenças é preocupante no caso dos primatas que vivem perto de regiões densamente habitadas”, explica Talebi. Na Indonésia, muitos macacos-de-cauda-longa (Macaca fascicularis) estão morrendo por sarampo e rubéola.

Teixeira também lembra que o surto de febre amarela no Rio Grande do Sul entre 2008 e 2009 dizimou mais de 2 mil bugios-ruivos e bugios-pretos (Alouatta caraya). “A epidemia de 2016 e 2017 foi mais preocupante”, diz Teixeira. “Depois de décadas sem ter sido identificado na Mata Atlântica, o vírus da doença chegou nessa região e colocou em risco algumas espécies de macacos já ameaçadas por outros fatores.” Para o médico veterinário, presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia entre 2016 e 2017, é fundamental investir em pesquisas e no aprimoramento dos serviços de vigilância em saúde, por meio da expansão dos laboratórios de diagnóstico, para mitigar o impacto do vírus nas populações de primatas no Brasil.

“As doenças infecciosas representam enorme desafio à conservação dos macacos no mundo”, destaca o primatólogo Paulo Henrique Gomes Castro, do Centro Nacional de Primatas, em Belém. “Essas populações são extremamente vulneráveis aos vírus e suas possíveis mutações. Mesmo que consigamos desenvolver uma vacina apropriada para eles, as dificuldades de imunização das populações silvestres seriam um desafio”, destaca o pesquisador, que não participou do estudo na PeerJ.

Ações articuladas

Diante disso, os autores do estudo defendem uma articulação entre diferentes setores sociais, de legisladores nacionais e internacionais a organizações não governamentais e a sociedade civil, em prol da conservação dos primatas. “A criação de áreas de proteção ambiental constitui a principal ferramenta de conservação”, argumenta Talebi. Hoje, apenas 17% das áreas de ocorrência de primatas na Indonésia e 14% na República Democrática do Congo estão dentro dos limites das áreas de proteção ambiental — no Brasil e em Madagascar esse número sobe para 38%.

Na Indonésia, um grupo de 25 pesquisadores ambientais, membros da Alliance of Leading Environmental Researchers and Thinkers (Alert), já se articula nesse sentido. Em julho, eles enviaram uma carta ao presidente daquele país pedindo a suspensão dos planos de construção de uma usina hidrelétrica no norte da ilha de Sumatra sob o argumento de que o projeto, de custo estimado em US$ 1,6 bilhão, destruirá a floresta Batang Toru, hábitat do raro orangotango-de-tapanuli (Pongo tapanuliensis).

Esta notícia foi publicada na Edição 270 da Revista Pesquisa Fapesp em 16 de agosto de 2018. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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