Medo irracional
Discute-se hoje o poder que uma situação de risco como a epidemia da gripe A tem sobre o comportamento das pessoas.“Sei que ainda é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar para a cara do outro e transmitir a infecção.” A frase é de A Peste, de Albert Camus, publicado em 1947. O livro conta a história de uma grande epidemia que alarmou a população de uma cidade – mas bem poderia retratar o comportamento das pessoas hoje nas ruas brasileiras, que se protegem com medo da contaminação da gripe A (H1N1).
Embora seja em menor proporção do que na obra de Camus, a sociedade vive agora as consequências de uma cultura do medo, forte a ponto de impor a irracionalidade sobre os comportamentos individuais.
Os inúmeros cuidados tomados hoje para prevenir a gripe não são muito diferentes dos citados em obras literárias. Mas a diferença fundamental está na falta de confiança no trabalho das autoridades competentes. De acordo com o sociólogo, especialista em segurança e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Pedro Rodolfo Bodê, o maior medo hoje está na crise de confiança que se tem nas informações passadas pelo governo à respeito do assunto.
“Isso é o maior fermento para se instalar situações de medo generalizadas”, explica. Soma-se a isso a dificuldade que o sistema de saúde enfrenta para dar conta de todos os casos de gripe, o que provoca insegurança na população.
Numa época em que as informações se disseminam facilmente pela internet, não é difícil que o medo se espalhe como rastilho de pólvora. Essa falta de confiança faz com que vários e-mails que circulam pela rede façam os mais diversos estragos possíveis.
“Temos coisas absurdas passando de um e-mail para outro. As pessoas acreditam que tudo é uma grande conspiração, que morre mais gente do que é divulgado. Isso vira uma bola de neve”, diz Bodê.
No livro Medo Líquido, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, afirma que o medo é a marca da sociedade contemporânea, reforçado principalmente pela sensação de impotência. É esse sentimento de não poder fazer nada diante de uma ameaça que acentua o pânico.
Historicamente, o medo é algo positivo, pois ele provoca a reação e a defesa, o que livra o ser humano de muitas situações de risco. O medo excessivo que leva a mudanças comportamentais preocupa sociólogos, historiadores, psicólogos e outros profissionais de diversas áreas. Estes afirmam que não se pode pensar no medo apenas como um fato que leva ao isolamento dos indivíduos. Um mal que ameaça a todos pode também levar à união e à solidariedade.
É o que acontece no livro de Camus. A peste faz com que trabalhadores se unam para tentar lidar com um problema em comum.
O professor de sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Lindomar Wessler Bonato, explica que a individualização é um comportamento típico da sociedade moderna, mas que um dos medos atuais mais latentes é o da perda dos vínculos afetivos. “A complexidade da ocupação dos espaços e a disputa que se estabelece por eles leva à solidão e ao consequente medo dela”, diz. Ao mesmo tempo que grandes epidemias podem levar ao pânico e tendem a afastar as pessoas que temem o contágio, são em situações como essas que elas são levadas a se solidarizar em nome de uma causa que afeta todo mundo.
Medo dobrado
Para as pessoas que sofrem de algum transtorno psicológico, como o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou a hipocondria, situações como a da gripe A (H1N1) tendem a acentuar o medo. Segundo o psiquiatra e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antônio Egídio Nardi, a procura por tratamento aumentou cerca de 15% na universidade depois que a gripe chegou ao Brasil.
“Quem já possui algum problema psicológico sofre mais com isso, pois o medo de contrair o vírus é muito grande, o que altera muito a vida da pessoa. Ela deixa de sair de casa e realizar suas atividades normais com medo de ser contaminado”, explica.
O hiponcodríaco sempre acha que está doente, principalmente quando vê algo novo nos jornais ou na televisão. Nardi explica que essa pessoa é muito sugestionável e por isso o medo que ela sente é muito maior do que o dos outros.
Algo semelhante acontece com portadores de TOC que são maníacos por higiene. Frente a uma ameça de contágio, a quantidade de lavagem de mãos, por exemplo, se torna muito maior. “Agora com toda a imprensa em cima da gripe, o hipocondríaco sofre muito mais”, diz o médico.
O tratamento geralmente é feito com a intensificação do tratamento e o auxílio de psicoterapia comportamental para que o paciente controle seus hábitos exagerados e sofra menos com a situação. O psiquiatra conta que para as pessoas mais sugestionáveis, cada vez que algum artista famoso contrai alguma doença, por exemplo, a procura nos postos de saúde de pessoas com sintomas dessa mesma doença aumenta.
“A complexidade da ocupação dos espaços e a disputa que se estabelece por eles leva à solidão e ao consequente medo dela”, diz. Ao mesmo tempo que grandes epidemias podem levar ao pânico e tendem a afastar as pessoas que temem o contágio, são em situações como essas que elas são levadas a se solidarizar em nome de uma causa que afeta todo mundo.
Fonte: http://portal.rpc.com.br/08/08/2009